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UM DESVIO DE ROTA

Estamos inertes diante do horror. Apesar de toda a força aplicada sobre nós verticalmente de cima para baixo seguimos inertes. Como é possível? O FILHO DO PRESIDENTE inicia um processo físico e social de reação provocada por uma ação oposta e de mesma intensidade.

Por Natália Balbino*

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20h02 eu entro na sala.

 

Me deparo com um foyer mais movimentado que da última vez.

 

Um espectador pede para que os outros fechem os microfones. Aparentemente ele está incomodado com todos aqueles ruídos e conversas atravessadas num movimento que se assemelha a um foyer comum com todos aqueles ruídos e conversas atravessadas não fossem as dificuldades tecnológicas do “novo normal”. Detesto essa expressão. Não é normal. Com todas as dificuldades tecnológicas dessa experiência de sobrevivência e resistência artística. Há algo de novo nisso? Certamente não há nada de normal. Nunca houve.

 

Espectadores buscam uns aos outros através das suas janelinhas tecnológicas ou dividem a experiência com seus parceiros de quarentena. Por que está aparecendo o seu nome ali? Tem como colocar o meu nome? Ou o nosso? Dinah, você veio! O Brasil bateu recorde na média móvel de mortos por coronavírus. Alá, apareceu seu nome. Ih, congelei. Eco. Já somos cento e quarenta e oito janelas. Uau, que sucesso! Uhuuuu. Eco. Dinah está com um vinho. A gente podia pegar um vinho também.

 

Dou um gole na minha cerveja.

 

Temos ainda 5 minutos quando um espectador solicita o primeiro sinal. Reivindicações de algum traço de normalidade, símbolos da normalidade. Ricardo, nosso anfitrião, ator e comandante, gentilmente explica que o primeiro sinal é dado antes dos espectadores entrarem na sala. O primeiro sinal é um aviso para a equipe de que as portas do teatro estão sendo abertas.

 

Segundo sinal. Terceiro sinal. Black out.

 

Ricardo gentilmente avisa que vai desligar a câmera de alguns espectadores que ainda brigam com a tecnologia. BOA NOITE, RICARDO CABRAL. Boa noite e, gentilmente mais uma vez, desliga os microfones dos espectadores. Teatro do Caminho e Corbelino Cultural apresentam.

 

Passo a passo Ricardo nos descreve o percurso que será feito nos próximos minutos. Algo entre a boca e o cu via quarto fazendo ponto final na sala. Algo entre Copacabana e o Centro fazendo um desvio de rota rumo a Barra da Tijuca. Enquanto a narrativa passeia por esses lugares que me são tão comuns, eu me sinto presenteada com a possibilidade de estar novamente. Já se vão a essa altura mais de quatro meses de isolamento social. Pergunto-me como estaria sendo essa experiência para a espectadora de Belém do Pará. Ou para outro de Maceió. Será que eles conhecem esses lugares ou será que eles partilham desse passeio com a mesma riqueza de detalhes que eu consigo vislumbrar?

 

Pegamos o metrô. Atrasados. Certamente não vai dar tempo. Aqui o desvio de rota. A curva de casos do coronavírus deveria estar indo para baixo, por que ainda estamos subindo? Era pra ser tão longo assim o espaço entre o Cantagalo e a Siqueira Campos? Talvez se tivéssemos pegado o metrô mais cedo teríamos mais clareza do risco. Talvez se não tivéssemos sendo governados pelo horror não estaríamos indo para Barra da Tijuca! Merda!

 

O celular cai. Uma freada brusca. Ricardo descreve o horror que vai tomando conta da expressão das pessoas do lado de fora do vagão da estação General Osório. Alguém se matou.

 

Alguém se matou. Que horror. Muitas pessoas estão cada vez mais se matando. Que horror. Eu já tive vontade de me matar. Você não? Que horror. Eu hoje quis me matar. Você não? Que horror. Eu não me matei, mas alguém se matou.

 

Nesse momento o horror opera um desvio de rota numa trajetória. Quantas vezes o horror já teria feito esse percurso? Já teria o horror se lançado outras vezes nos trilhos grossos das linhas de expressão da testa do ator? Da mente do ator surge aquela narrativa pornográfica que fora um dia ideia, em outro texto, mais adiante corpo e agora imagem na minha mente. O ator, Ele se lança ao ato. Ele se entrega ao horror. Ele. Não mais eu. Não mais nós. Ele lança mão de mecanismos linguísticos e dispositivos cênicos que permitem que Ele entre e saia da narrativa sempre que assim escolher. Nesse momento ELE executa dois policiais.

Uma citação de Nietzsche conflita com a sequência de toma-toma, sequência de vapo-vapo que vem das caixas de som do meu vizinho.

 

ELE abusa de seu privilégio branco não para se afirmar como desembargador em Alphaville formado melhor do que você. Há um desvio de rota. Ele executa uma ação isolada e irrefletida que nos surpreende e nos reposiciona diante daquela narrativa. Estamos espectadores nesse momento num carrinho bate-bate brigando com as leis da física. Estamos inertes diante do horror. Apesar de toda a força aplicada sobre nós verticalmente de cima para baixo seguimos inertes. Como é possível? A narrativa de “O filho do presidente” inicia um processo físico e social de reação provocada por uma ação oposta e de mesma intensidade. E é nesse momento que percebemos que estamos desafiando há tempos as leis newtonianas que regem o universo enquanto insistimos em seguir as leis frágeis que cercam a nossa civilização antidemocrática, desigual e racista.

 

Ele, o ator, o personagem, o Ricardo Cabral, já não sei mais ao certo, essa figura mítica que transborda diante de nós, foge da cena do crime com uma bike do Itaú pedalando pela cidade em desespero. Ele, o ator, o personagem, o Ricardo Cabral, essa figura mítica segue conduzindo essa narrativa operando uma direção de fotografia ativa que nos provoca a todo instante e nos impede de cair na passividade usual de uma experiência teatral-cinematográfica-tecnológica. Não é teatro filmado. Não é cinema ao vivo. Não é reunião à distância.

 

E de repente o breu.

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Perdemos a imagem da tela. Ficamos com a narrativa de um homem em fuga que entra na casa de seu ex-namorado e passa sem muita transição ou cerimônia do horror ao prazer. Horror para muitos, ainda, que insistem em recalcar e censurar as múltiplas formas de amor e prazer possíveis. Horror para quem em estado de isolamento social é obrigado a se privar das experiências de amor e prazer impossíveis. Censurado. Justamente nesse ápice da pornografia somos dispensados da direção de fotografia e somos convidados a projetar autonomamente tais imagens eróticas. O gozo. Um respiro na narrativa. Um desacelerar. Uma quebra de ritmo, de protocolo. Um desvio de rota. Mais um.

 

Nesse momento Ricardo nos convoca para reativar os microfones. Alô! Ecoa. Uma informação. Essa história tem início, meio e fim determinados, como todas, sim. Porém, as brechas. Sim, as brechas. Que nos lembram mais uma vez que não estamos numa plataforma de streaming. O tal do ao vivo. Esse cara, ator, personagem, figura mítica acorda na casa do ex e retoma o seu estado de fuga. Ele vai pra onde?

 

Praia. Padaria. Metrô. Casa de um conhecido.

 

Pipocam as respostas pelas frestas das janelas abertas. Ricardo acolhe algumas delas e sem desviar a rota pergunta: qual o nome da peça? Ele, não. Ele. O filho do inominável. Seria ele aqui nessa narrativa o alter ego do Presidente, este homem com quem muitos desejariam encontrar, este homem capaz de despertar o horror e o prazer doentios? O fato é que teremos que adiar o encontro com este homem e nos contentar com um encontro possível nessa narrativa com uma de suas cinco “horcruxs”.

 

O que você faria se estivesse diante do filho do Presidente?

 

Cuspe. Bofetada. Por que?

 

Mais uma vez Ele, o ator, o personagem, essa figura mítica fica frente a frente com o horror. Mais uma vez Ele executa um desvio de rota e converte o horror em prazer. O gozo do sangue que escorre pela pia do banheiro.

 

Muito obrigado. Aplausos tímidos que vão tomando corpo. As luzes se acendem e estou diante não do filho do presidente, mas de muitos psicanalistas que dentro de seu setor se colocaram na linha de frente da luta pela democracia. Não, na verdade eu estou mais uma vez diante da tela do meu celular sendo projetada por uma janela em muitas telas pelo Brasil afora.

 

Nesse momento Ela, a mulher, a diretora, essa figura mítica por trás (pela frente) dessa experiência viva toma a palavra para anunciar o início. Natasha Corbelino essa voz que já é capaz de provocar fazedorxs da cultura em/na rede a sair da inércia. Ela é mais uma vez a mulher à frente de uma iniciativa antirracista com uma programação continuada disso que não é teatro nem cinema, mas que é o possível hoje.

 

Microfone aberto para os psicanalistas pela democracia. É interessante ouvir todos aqueles estudiosos da mente humana conceituando algumas das sensações experimentadas durante o ato artístico. Horror ao ato. O erotismo do não pornográfico. Teremos que nos confrontar com a produção da morte pelo processo civilizatório!? Uma ação artística que não se contenta em ter o espectador como coautor, mas que o convoca para ser cúmplice da violência. Por que não nos confrontamos com o Presidente? Porque o pai do filho do presidente é alguém que já nasceu morto. O corpo aqui está presente e até mais próximo do que no teatro.

 

Paro nessa afirmação. Como é possível o corpo físico estar mais presente pelo artefato tecnológico do que no teatro? Como a presença se faz possível no isolamento social? Será que esse chacoalhar do horror ao ato que se concretiza, essa cumplicidade no crime que confronta o horror, essa saída da inércia, será que tudo isso é a presença?

 

É um desejo público matar o Presidente, afirma.

 

Passamos cúmplices ao ato de um desejo compartilhado. Sem desvio de rota. Matar o filho do Presidente é matar o filho do fascismo. O ovo da serpente. Aquilo que está por vir já que o presente já é. O presente já está horrível. O horror está posto.

 

O futuro é um desejo público.

 

Matar o filho é achar uma brecha, um vestígio de terra no asfalto infértil e semear o possível.

 

No encerramento do debate alguém se manifesta: mais ainda assim a nossa saída tem que ser pela estética. Não é o caso de pegar em armas. Eles estão se armando e nós somos criativos.

 

Um desvio de rota. O retorno da inércia. Um por um fechamos as janelas.

(*) Natália Balbino é atriz e roteirista. Bacharel em Artes Cênicas pela PUC-Rio e mestranda em Artes da Cena pela UFRJ.

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