ANTES DE DESTRUIR O OVO DO FASCISMO
É PRECISO DESMANTELAR A MÁQUINA DO RACISMO
Como ver, pensar e agir em uma sociedade onde tantos palcos são destruídos, aniquilados, exterminados? Corpos-palcos como os meus sobretudo. Como?
Por Juliana França*
Faz mais de 10 dias desde que fui tragada pela câmera-corpo-olho de Natasha Corbelino e Ricardo Cabral. Ali na sala, no quase espetáculo, que talvez já fosse o acontecimento cênico ou parte dele as pessoas brotavam na tela quase sempre sozinhas, uma ou outra acompanhada. Muitas pessoas no mesmo instante, no mesmo espaço cibernético. “Rio de Janeiro”, “Florianópolis”, “Piauí aqui”, “Mato grosso também”, “Belém do Pará”. Brasil adentro, Brasil afora. “Não deu nem tempo de me arrumar para vir para o teatro”, disse uma senhora.
Teatro adentro, teatro desse tempo. tempo pandêmico. Parafraseio Artaud, “o louco”, o suicidado pela sociedade: através da pandemia (da peste) conseguimos provocar mudanças radicais dentro de uma sociedade e, consequentemente, em sua cultura. Sentir o teatro através de uma tela foi uma das coisas mais controversas que pôde ser posta pra mim nos últimos tempos. Em meio a imensa discussão: é ou não é teatro? O que é teatro? Eu me perdi vendo Ricardo sendo teatro, assim como me perdi tantas vezes vendo milhares de atrizes e atores sendo teatro dentro e fora do edifício teatral. Até agora fico me questionando como é possível ser teatro afora do edifício teatral, afora da rua, afora dos espaços alternativos. Ricardo e Natasha foram teatro. Philipe Veloso, Luciano Dias, Dinah Kleve, Dyemes Pechincha, Layla R S Gomes, Márcia Regina Co.., Gabriel, Iphone de MIRIAN, Mariana Molica, Iphone de Mauro e todas as outras fotografias em movimento foram teatro.
Teatro é feito por gente, pra gente e com a gente. Perceber isso, no espaço outro, o cibernético, que passou a ser o espaço do encontro, nos encontramos ali. Cada centímetro de Ricardo-câmera-olho-corpo me aproximava mais e mais da sensação de ser teatro, de ser vida e estar viva na vida. Na encenação tudo é fio condutor é trilho é linha é freada é autocrítica é labor. Teve uma palavra, eu não lembro… que rasga terra, que fazemos com a terra para jogar a semente e fazer germinar… é alguma coisa que vem do latim, como é, Ricardo-câmera-olho-corpo? Eu não vou lembrar, mas ainda estou com a sensação dessa palavra no meu corpo. E nesse meu corpo de mulher preta e japeriense que é palco de tantas histórias, vi em Ricardo-câmera-olho-corpo palco, acho que alguém falou sobre isso, sobre corpo ser palco. Como ver, pensar e agir em uma sociedade onde tantos palcos são destruídos, aniquilados, exterminados? Corpos-palcos como os meus sobretudo. Como?
Racializar o debate é fundamental, não passaremos e não superaremos as ranhuras e os estragos seculares do racismo enquanto não pensarmos por esse prisma. Durante o debate, pós palmas, isso emergiu pulsante e latente. O texto se transformando em ação. Delírio, lembrei da palavra, “ delilare” ? “ are” . arado. sair fora do sulco. Antes de matar o ovo do fascismo é preciso desarticular essa máquina gigantesca que é o racismo dentro da sociedade brasileira. Se horrorizar com a morte do filho do presidente não me parece ser um motivo para tamanho horror quando se tem um filho preto fuzilado dentro de casa, fuzilado dentro do carro com seus amigos, com a sua família ou com o seu motorista. Isso sim me causa horror, me causa medo. O extermínio segue em curso, como pará-lo? O que fazer e como fazer?
O Iphone do Mauro comia batata frita e eu gostei de ficar olhando pra ele por alguns instantes enquanto ouvia a Molica citar Mbembe, o filósofo camarones. E fiquei pensando, enquanto a ouvia e via o Iphone do Mauro comer batata frita, a importância de se educar racialmente e transformar teorias/referências em prática. Alguém em algum momento citou Nietzsche e não foi ele que disse que conhecimento só vale se servir à vida? Pois bem, “Que boca na cena?” nasce do desejo de psicanalistas de todo o Brasil e de Natasha Corbelino de transformar pensamentos progressistas em práticas antirracistas e progressistas. Um projeto com uma programação inteiramente composta por artistas pretas e pretos. Na curadoria tem gente preta também e assim fazer algum capital girar por outras rotas, rotas criativas pretas talvez esse seja um bom começo. Inverter, confundir a ordem que a máquina do racismo está acostumada a seguir.
Daqui continuamos a inventar estratagemas para a manutenção da vida, das nossas vidas pretas e ditas periféricas através da arte, através do teatro em uma plataforma online em meio a pandemia, em meio a peste e esperamos agindo para que a transformação aconteça
tão logo.
Vida longa às delirantes e aos delirantes,
Asé!
(*) Juliana França é cria de Japeri, professora e mestra em Filosofia. Compõe também a coordenação do projeto “Artes Cênicas em extensão” da UniRio e integra o Grupo Código há 13 anos, um dos grupos articuladores da FRENTE/RJ e da Rede Baixada em Cena.