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POR QUE O FILHO DO PRESIDENTE?

Como seria o futuro desse país fictício se esses 36% de insatisfeitos agissem para virar o jogo?

Por Dieymes Pechincha*

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Nó.

Essa história tem muitos acontecimentos intrigantes, não pretendo entregar o ouro, mas tenho o compromisso de relatar o mais interessante dentre eles, o encontro entre a personagem Ric e o filho do presidente. Após o final da apresentação o performer Ricardo Cabral e a diretora Natasha Corbelino abrem a roda para um encontro com o grupo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD). Lá pelas tantas uma pessoa questiona “Por que o filho do Presidente? Não seria melhor o Pai?”

 

Retornemos ao edifício virtual.

Pela terceira ou quarta vez abro minha janela para experimentar esse reencontro com “O Filho do Presidente”. Meu nome está embaralhado numa tela entre muitos @s, #s, números e nomes. Começo a observar como as pessoas vão se encontrando e conformando algum grau de identificação. Fulane que estudou com Beltrana, que orienta Ciclano. A ciranda vai se formando e em questão de minutos nos tornamos cento e setenta e muitas pessoas. Muitas pessoas no mesmo edifício e a incalculáveis distâncias. É que fazemos parte da parcela da sociedade que consegue se manter em isolamento nesse momento em que o invisível Covid19 corre pelo país.

 

Haja organização pra tanta voz e tantos olhares curiosos. Um espectador pede para que outra pessoa desligue o microfone. “Mas ainda estamos no Foyer”, alguém responde. Dou uma risada por rememorar as pequenas convenções do edifício teatral. Coisas que tenho certa resistência. Tipo aquele momento em que as pessoas sentem que a coisa vai começar e logo notamos um “shiii”, “silêncio”. É de uma falta de educação tão grande pedir pra alguém se calar por uma mera convenção (polêmicas?). Ganhamos ou perdemos com esse policiamento?

 

Lembro dos artistas de rua, metrô, das feiras, das aglomerações. Eu bem que daria um mundo por uma sala com calor, com gente animada, com chiado de família que foi ver o primeiro solo do filho. Mas daria dois mundos e uma lua para rever uma banda improvisando ao lado do VLT da Carioca, uma roda de Slam na pedra do sal, ou uma peça teatral furando o asfalto e plantando esperança em algum canto da cidade. Talvez seja isso, saudade da rua.

 

Pois bem, esse sem dúvida é um dos principais motivos para rever tantas vezes “O filho do Presidente”. Eu corro pela cidade do Rio de Janeiro junto com Ric, nosso protagonista. É interessante pensar o quanto o atual momento de isolamento social contribuiu para aguçar minhas memórias sobre a cidade. A dramaturgia brinca com nossa imaginação. Faço uma colagem de memórias, imagens, odores e sensações frescas de um passado não tão recente. O ator diante do dispositivo-corpo-câmera se transforma em palco. Eu vejo a cidade nas frestas de sua pele. Pelos poros. Flor da pele. Quem dirá que eu não corri pela cidade? Tenho cento e setenta e muitas testemunhas na sala. Nós corremos.

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Façamos de conta.

Digamos que nessa história existe um país e que, em fevereiro de 2020, pesquisas apontavam que 36% da população considerava o governo péssimo ou ruim. Estamos tecendo um pano de fundo para a nossa história. Nesse mesmo país, um jovem artista corre para não chegar atrasado no ensaio. Ele precisa atravessar a cidade em poucos minutos. Sabemos que o artista partilha do sentimento refletido nos 36% de insatisfeitos.

 

“A peça é um projeto de uma resposta propositiva diante do caos que a gente tá atravessando.”

 

Ele embarca no metrô pro caminho contrário. A partir desse momento o atraso é uma certeza. Alguém se matou. Se jogou nos trilhos. Ninguém vê vestígios do corpo. A falta de empatia de alguns passageiros me faz pensar como teria contribuído para eleger o atual presidente.

 

01

É véspera de carnaval. O país fictício ainda sente o peso de uma ressaca social devido ao processo eleitoral presidencial. Existem indícios de que a vitória do atual presidente foi fruto de uma extensa campanha com divulgação de notícias falsas.

 

02

O país está em ano eleitoral novamente. Há aproximadamente um ano uma importante liderança parlamentar negra foi assassinada. Amigos da família do presidente estão entre os suspeitos pela execução. “Quem mandou matar?”

 

03

O presidente indica um de seus filhos para embaixador, o mesmo filho é acusado de coordenador um gabinete responsável por propagação de notícias falsas. Polícia investiga possível discussão de filho do presidente com liderança parlamentar negra assassinada. Os filhos do presidente são amigos do assassino. A sociedade quer saber: “quem mandou matar?”

 

“E eu pergunto a vocês: o que vocês fariam se ficassem cara a cara com o filho do presidente?”

 

Talvez os dois.

Surge a afirmação da existência de um desejo público: “matar o presidente”. Silêncio... É interessante como essa tese não foi confrontada. Logo noto que de todas as mortes do thriller, a única que me causa identificação é a do suicidado. Embora seja um momento de horror, esse de tirar a vida do outro. A plateia contempla o nosso gladiador destroçar o crânio do inimigo. Seria um interessante indício de ódio de classe?

 

Existe um jogo discursivo do performer-narrador-autor diante do ato de matar o filho do presidente. É “ele” que mata, não “eu”. É um dos poucos momentos em que o performer distancia sua ação da personagem. Espelhamento ou horror? Talvez os dois. Eu estranho o nosso silêncio. Espelhamento ou horror? Talvez os dois. Acho que descobri uma coisa nova sobre a gente. Passei a me perguntar como seria o futuro desse país fictício se esses 36% de insatisfeitos agissem para virar o jogo. Espelhamento ou horror? Talvez os dois. O pai ou o filho do presidente? Talvez os dois.

(*) Dieymes Pechincha é ator, performer, diretor e doutorando em Artes da Cena pela UFRJ.

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